Lídia Maria de Melo
Domingos de Oliveira, 31/12/1971 Fonte: Arquivo Nacional. Acervo do Fundo Correio da Manhã. Domínio Público. 31 de dezembro de 1971 |
O escritor não precisa escrever necessariamente sobre si. Até pode. Mas, muitas vezes, sente as dores, os amores, as aflições, os contentamentos do outro.
Na verdade, criativamente, o escritor reproduz, recria, imagina.
Ontem à tarde, a partida definitiva do cineasta, ator, roteirista e escritor Domingos de Oliveira me inspirou.
Imbuída desse estado de espírito, escrevi o poema Um Segundo, que transcrevo mais abaixo.
Como consagrou Fernando Pessoa, "O poeta é um fingidor/ finge tão completamente/ que chega a sentir que é dor/ a dor que deveras sente".
O fim é uma certeza na vida de todo ser humano. A perda também.
Infinitas coisas da vida me inspiram.
Infinitas coisas da vida me inspiram.
(Mera coincidência: com muitos anos de diferença, nasci no mesmo dia em que Domingos de Oliveira veio ao mundo).
Um Segundo
Lídia Maria de MeloLevantou da cama, olhou o mar pela janela.
Fazia sol na cidade e o mundo andava em reboliço.
Saboreou o suco de laranja meio azedo.
Do jeito que aprendeu a gostar.
Comeu o bagaço da laranja espremida,
contrariando as ideias maternas.
O intestino sempre agradeceu,
Falou ao telefone com um amigo de sempre.
Não era dado aos modernos contatos de teclados.
Preferia o olho no olho, ou confissões no ouvido, permeadas por Graham Bell.
Ouviu um disco de Tom, fingindo que o encontraria num bar de esquina.
Não tardou, chegou a hora do almoço.
Coxa de frango dourada. Purê de batata-baroa.
Não conseguiu deixar de lembrar da rima das primeiras idades: ovo e uva boa.
Subiu até a suíte para escovar os dentes e esticar o esqueleto.
Pela janela, uma brisa carinhosa aliviava a temperatura indigesta do verão.
Já era outono e a meteorologia prometia mais calmaria.
Mesmo sem querer, adormeceu.
Acordou de um susto.
Precisava continuar a escrever o roteiro encomendado.
Levantou da cama com cuidado.
O físico já não lhe permitia pular.
Ajeitou-se diante do computador e percebeu que perdera a partida amistosa da seleção de futebol.
Se era para falar em perdas, tantas coisas já se tinham ido.
Até mesmo a democracia andava se equilibrando no fio de uma navalha afiada.
Era mesmo hora de escrever.
Até conseguiu digitar a palavra “Quando”, mas uma pontada lancinante encolheu os dedos de suas mãos.
E não deu tempo para mais nada.
Não gritou, não pediu ajuda, não se contorceu, nem pensou.
Foi coisa de um segundo.
Sem subterfúgios.
A tarde silenciosa e tranquila trouxera um recado lacônico:
estava na hora de ir.
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