domingo, 15 de abril de 2018

Pelo deleite do ócio, por conta de uma ousadia


                                                                                 Conto de Lídia Maria de Melo
Reprodução do jornal A Tribuna,
de 27 de julho de 1997,
Caderno A T Especial Leitura
Página 7. Ilustração de Seri.
Aos 80 anos, para mais nada era cedo.
Saiu do elevador sorrateiro, ignorando o chamado da nora pelo interfone e sem cumprimentar o zelador. Assim evitaria indagações. Estava cansado dos cuidados e da histeria dela no controle da casa, do filho com os canhotos dos cheques e dos netos pelo computador. Queria comer tranquilo sua feijoada, tradição sabatina de quem não perdera o gosto pela vida e seus temperos. Tinha urgência desses prazeres. Já vivia seu futuro.
E foi pensando nisso que alcançou o calçadão da praia, antes de escolher o restaurante onde iria almoçar. Com a nova estação, os chapéus-de-sol  já estavam desnudos e a folhagem formava um tapete para o vaivém indiferente de rapazes e moças. No seu tempo, melhor dizendo, na sua juventude, porque seu tempo era agora, só os  pedestrianistas gastavam energia correndo pra lá e pra cá. Agora era uma febre, mas não deixava de ver beleza naquela  coreografia de corpos exuberantes.
Quando chegou à cidade, 65 anos atrás, pensou que seus canais revestidos fossem córregos domesticados pela artimanha de algum desvairado. Depois descobriu a finalidade sanitária daqueles drenos fincados no solo  encharcado e aplaudiu. Agora andavam querendo cobrir esse íntimo artifício geográfico, para criar bolsões de estacionamento. Coisa de gente sem história e sem preocupação com a saúde pública. Fossem buscar solução para os arranha-céus recalcados na orla da praia. Essa providência traria benefício maior à população e à arquitetura.
Continuou andando sem rumo, apenas pelo deleite do ócio. O filho, a nora e os meninos deveriam desfrutar dessa preguiça, decerto economizariam o tanto que gastam para combater o estresse. Nisso ouviu um chamado do outro lado da rua. Acenou sem mostrar disposição de parar. Era o amigo psiquiatra, que ganhou notoriedade ajudando almas atormentadas da alta roda, mas não vencia a frustração de jamais ter conseguido libertar o filho e a filha de sua jurisdição, como ele mesmo costumava dizer. A moça, que  já nem merecia ser assim chamada, pois já passava dos 50, ainda pedia permissão para sair à noite. O rapaz, um pouco mais novo, casou, era pai de filhos, mas nunca montou casa própria. Ainda ocupava cômodos da mansão do pai. “Casa de ferreiro, espeto de vara bem fraquinha”.
Pouco antes de entrar no restaurante, vasculhou a memória na intenção de encontrar o nome do amigo psiquiatra. Estava na ponta da língua, mas não desgrudava. Sentou-se, pediu ao garçom uma caipirinha de pinga e a  feijoada. Do início ao fim do almoço, fez novos esforços, mas só se recordou de Nico Fidenco, o porco criado pelo pai nos fundos do quintal de casa e lavado todos os dias para não cheirar mal.
Foi com Nico que começara a duvidar, aos 10 anos, da teoria de que os bichos eram irracionais. Irracionais eram o filho, a nora, os netos e todos os que desperdiçavam aquela portentosa tarde de sol, confinados em apartamentos diante de um computador. Nico atendia aos seus chamados e respondia às suas falas, grunhindo demoradamente. Sabia que haviam estabelecido um meio de comunicação. Só se sentia frustrado por não ser capaz de decifrar o que o amigo de estimação lhe transmitia.
Já adulto, um cão ajudou-o a reforçar a convicção de que os bichos também raciocinavam. De dentro de um ônibus parado, acompanhou a primeira tentativa que o animal fez para pular um muro. Como não conseguiu, ele tomou distância, observou, como se calculasse, e arriscou novo salto. Diante de outro fracasso, ele se afastou mais ainda e pulou, aí sim, na altura desejada. Se aquela sequência de ensaios e erros não expressava uma  espécie de raciocínio, não sabia mais o que era pensar. Como somente os cientistas tinham autoridade para ditar conceitos dessa natureza, jamais polemizou sobre o assunto. Mas consigo mesmo preferia seguir a intuição.
Despreocupou-se do nome do amigo. A lembrança não alteraria o curso daquela tarde. Após pagar a conta, resolveu retornar por umas ruas internas que ele conhecia de tantos e tantos anos. Entrou na farmácia da esquina onde costumava se reunir com a garotada, antes de ganharem os bailes, num tempo que nem o calendário devia mais registrar. Perguntou por  Célio. O balconista franziu o cenho, constrangido, e disse não conhecer a pessoa que ele procurava. Não deu o braço a torcer para aquele rapaz ainda imberbe. Decerto era um distraído. Como podia desconhecer que o Célio fora o proprietário daquele estabelecimento por anos e anos e atendera os moradores da Vila Hayden e de outros bairros, quando vinham buscar  ajuda na aflição de uma dor de ouvido, de uma gripe insistente, uma inflamação de garganta? Ainda quis perseverar, mas o rapaz já se ocupava de um freguês. Os jovens eram assim mesmo, sem tempo para escutar.
As ruas também já não possuíam o aconchego da vizinhança, pensou, seguindo em frente, para um instante depois se surpreender com uma moça de olhos fortes, que caminhava no sentido inverso, mirando-o com firmeza e comentando para a companheira, sem se importar se ele podia ouvir: “Que homem bonito! Imagine quando era novo”.   
Lisonjeado e encabulado pela atitude que antigamente seria considerada atrevida, por pouco não agradeceu à desconhecida. Havia tempos ninguém o chamava de homem. Perdera a referência de quando passou a ser tratado por idoso, senhor, velho e simplesmente ’vô. Agora, por conta da ousadia daquela jovem, voltava a adquirir o vigor e a dignidade viril. Ainda era um homem. A tarde ganhava mais viço, embora estivesse caindo.
Quando dobrou a esquina de sua rua, nem se incomodou, como era seu costume, com o avanço voraz dos prédios sobre os espaços das casas. A disposição deixava-o mais complacente. E  mais sensível também. A ponto de se extasiar perante a cena extemporânea: um vendedor de milho verde apertava com insistência e ritmo a buzina de seu triciclo, fazendo descer crianças de tudo quanto era andar dos edifícios próximos, como numa convocação. Salvatori Tardelli, então, sorriu pleno: “Como nos tempos das casas!”
A tarde se retirava. O aroma das espigas cozidas afagava-lhe as narinas e a boca se enchia de água. E mais crianças chegavam, rodeando o vendedor. Entre elas, um dos netos. O menorzinho. “Como nos tempos das casas!”, repetiu satisfeito. Quando passou pelo porteiro, cumprimentou-o efusivo, com o sorriso aguçado. Agora,  já era noite. E Salvatori Tardelli, um menino.

                                                                         
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(Escrevi este conto em 1997 e publiquei no jornal A Tribuna, de Santos/SP, no dia  27 julho de 1997) 
Aproveite e lei também o meu conto Bala Perdida.
       
               

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