terça-feira, 9 de março de 2021

Meu poema Apenas Um Navio virou música na voz de Julinho Bittencourt

Lídia Maria de Melo

Em maio de 1982, quando eu fazia o primeiro ano do curso de Comunicação Social, habilitação Jornalismo, na UniSantos, escrevi o poema Apenas Um Navio. Na mesma época, fiz um outro, intitulado Filho de Um Estupro.
Ambos remetem às memórias de quando eu tinha 6 anos de idade e meu pai, Iradil Santos Mello, foi preso pelo regime militar em 1964, logo após o golpe de estado, simplesmente porque era sindicalista. Marcam também a atuação de minha mãe, Mercedes Gomes de Sá, para proteger e sustentar a família, materialmente e emocionalmente.
Primeiro, meu pai ficou na sede do Dops. Depois, no navio Raul Soares, que serviu de presídio político no canal do estuário do Porto de Santos, de abril a novembro de 1964. 
Acabei incluindo os dois poemas no meu trabalho de conclusão de curso (TCC), intitulado Para Não Ser Pego de Surpresa, em 1985. Dez anos depois, ou seja, em 1995, o trabalho virou livro e publiquei com o título de Raul Soares, Um Navio Tatuado em Nós. 
Em 2013, esses dois poemas foram comentados no livro Esquinas do Mundo, ensaios sobre História e Literatura a partir do porto de Santos, do jornalista e historiador Alessandro Atanes, que também os espalhou em blogs e sites (http://revistapausa.blogspot.com/2012/08/apenas-um-navio-poesia-em-estado-de.html).
Agora, em 2021, recebo a notícia de que o jornalista e músico Julinho Bittencourt criou uma melodia para meu poema Apenas Um Navio. Dessa forma, nós nos tornamos parceiros.
Quando você escutar a música Apenas Um Navio, saiba que se trata de mais um filhinho meu que escapa de meus cuidados e ganha o mundo.
Não é a primeira vez que faço uma parceria, mas é sempre como se fosse.
Se você não conhece os poemas, leia a seguir. Se já conhece, relembre:

Apenas Um Navio
   (Lídia Maria de Melo - maio de 1982)

No ano de meia quatro,
no meio do estuário,
em frente ao Porto de Santos,
o porto de minha infância,
das barcas e das catraias,
dos navios e rebocadores,
dos trens e dos armazéns,
onde os botos,
às cinco e meia da tarde,
viravam cambalhotas
enquanto as gaivotas
fisgavam peixes no mar,
avistava-se um navio
velho, preto,
ancorado
próximo à Ilha Barnabé,
que os menos informados
confundiam com um navio comum.
Mas eu e muitas crianças,
que ansiavam
para verem os pais
(confinados),
sabíamos que ele era bem mais
que um navio qualquer
e o culpávamos
pela ausência paterna
nos almoços de domingo,
pela angústia disfarçada nos olhos de nossas mães,
pela melancolia que abraçava
todas as nossas brincadeiras,
pela vontade de chorar
sem saber bem o porquê.
Nós já sentíamos tudo
e éramos tão crianças!
Só o que não entendíamos
é que o Raul Soares
era apenas um navio
e não tinha culpa de nada.
Não tinha culpa de ter virado
Instrumento repressivo
no ano de meia quatro.

.....

Filho de Um Estupro

   (Lídia Maria de Melo - maio de 1982)

O pai deste meu medo de agora
veio montado no nariz vermelho
de minha mãe
que forçava um sorriso
para ocultar
de suas crianças
no pátio da escola
o peso da repressão
(não saberia traduzir-nos
que há horas certas
para falar, pensar e discordar).
No entanto, não pôde impedir
que o montador de seu nariz
violentasse meus olhos
e me engravidasse o coração
com um pavor pulsante
que jamais poderei abortar...
E carrego comigo
cravado nos gestos
enterrado nos olhos,
com o incômodo
de uma mãe que carrega no ventre
o filho de um estupro.
 

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