domingo, 30 de agosto de 2020

Vivos, como Sherazade

LÍDIA MARIA DE MELO              

Artigo foi publicado no jornal  A Tribuna, de Santos, em  30 de agosto de 2020, na página Marcas da Pandemia.
Artigo foi publicado no jornal 
A Tribuna, de Santos, em
 30 de agosto de 2020,

na página Marcas da Pandemia.

Somos mortais. Uma espécie de marca d’água biológica atesta nossa finitude. Ainda assim, encaramos a morte como uma abstração. Algo para o futuro, que é sempre um tempo distante. A morte presente e concreta é a dos outros. Esse mecanismo de defesa deve ter sido o jeito que a natureza encontrou para nos livrar de uma eterna angústia.
       Então, surge a covid-19. De supetão, a nova doença reafirma a verdade absoluta: somos realmente efêmeros! O fim pode ser daqui a pouco. E o inimigo não usa foice, nem capuz. Sequer expõe sua face. Tampouco lembra o macabro corvo do poema de Edgar Allan Poe, que repete insistente: nunca mais! É um ser mil vezes mais fino que um fio de cabelo. Um vírus que zomba dos limites de nossos olhos. Pode estar em qualquer lugar e nos tomar de assalto, como numa brincadeira de esconde-esconde.
       É claro que há pessoas que desdenham, não se importam, ignoram as normas de segurança, são imunes à dor alheia. Essas não têm empatia, palavra um tanto batida, mas que nomeia uma
habilidade ausente em egoístas e sociopatas. 
       A Organização Mundial da Saúde decretou a pandemia em 11 de março deste estranho 2020, ano em que o mundo se tornou, de fato, a aldeia global prevista por McLuhan e testemunhou descobertas linguísticas curiosas. Quarentena, por exemplo, designa um período que pode durar 14 dias, seis meses ou alguns anos. O produto eficaz para esterilizar as mãos, além de água e sabão, pode ser álcool gel ou álcool em gel. Tanto faz. Ainda não há regra exata. Importante é ser 70%.
       Em 13 de março, dei aula presencial na universidade. No dia seguinte, fomos informados de que migraríamos para mediação digital. Rapidamente, superamos os desafios, com vídeos, podcasts, e-books, conversas pelo celular e computador. Virei professora remota. Até uma revista, eu e meus alunos produzimos e editamos à distância nas aulas de Jornalismo. Os benefícios da tecnologia se inseriram na maioria das áreas.

Marcas da Pandemia, 
de A Tribuna, publica
artigos de autores convidados
.

           Tornei-me assídua fotógrafa da Lua e do pôr do Sol, além de atenta observadora do mar e do crescimento das orquídeas cultivadas por minha mãe no terraço do apartamento. Estamos juntas em reclusão, mas temos saudade dos membros da família apartados de nós. Diariamente, sem eles, saboreamos, com remorsos, a comida que ela faz. Se ela imaginasse que o distanciamento seria tão longo, teria proposto que ficássemos um a um sob suas asas.

       Permanecer em casa não é um problema, principalmente, para quem, como nós, sempre passou muitas horas fora dela, devido ao trabalho. Agora, o trabalho ocupa um considerável espaço em nosso lar. Problema é perder a liberdade, por imposição de um vírus. É viver com medo. Por nós e por quem amamos.
       As notícias sobre as milhares de mortes me fazem sofrer. As chamas na Amazônia e no Pantanal machucam o pedaço tupi-guarani de meu DNA. A boiada que pisoteia as leis de proteção ambiental e de reservas indígenas agride minha alma.
       Cuido do corpo e da mente, mas não consigo tocar violão, nem cantar. Até compus uma nova canção, mas só a Literatura, que leio e escrevo, consegue me socorrer. 
       Rezo todos os dias. Peço pelos meus, por mim, pelos cientistas. A ciência é nossa única tábua de salvação. Somos efêmeros, finitos, mortais, mas ainda é cedo para morrer. Meu sonho de consumo é a vacina. Até que ela chegue, sigo a receita: máscara, água e sabão, álcool em gel e isolamento. Por ora, como Sherazade, diante das ameaças do sultão Shariar, n’As Mil e Uma Noites, só precisamos nos manter vivos. 

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(Artigo publicado originalmente no jornal A Tribuna, na edição de 30 de agosto de 2020, na página Marcas da Pandemia) 

2 comentários:

  1. Tempos estranhos esses. Mas ainda temos saúde e um lar para nos refugiar. Ainda que não tenhamos liberdade para fazer o que fazíamos antes deste vírus, podemos esperar pela cura e aproveitar este tempo para refletir sobre nossa posição no mundo. Vamos sair dessa inteiras, Lidia. Cuide da Dona Mercedes. Beijos nas duas.

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  2. 👏👏👏👏
    Aprendemos com tudo isso, que devemos viver e agradecer pelo hoje, porém sem nos descuidar do amanhã!!😘

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