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Há 48 anos, o navio
Raul Soares virava prisão no Porto de Santos
Lídia Maria de Melo
(*)
Há 48 anos, na manhã de 24 de abril de 1964, uma
sexta-feira, o navio Raul Soares chegava ao Porto de Santos. Não trazia cargas,
nem passageiros. Procedente do Rio de Janeiro, tinha uma sinistra missão: servir de presídio político para aqueles que
o regime militar, recém-instalado no Brasil, considerasse subversivo ou uma
ameaça à ordem social.
Como não eram poucos os que se enquadravam nesse perfil, as
cadeias santistas não davam conta do número de recolhidos para averiguação. No
dia anterior, a imprensa local anunciara que, no Palácio da Polícia, situado na
Rua São Francisco, mais de 60 pessoas estavam presas à disposição do Dops
(Departamento de Ordem Política e Social). Na Capital, a decretação de prisões
também aumentava.
Era preciso improvisar, mas com força e rigor. O uso de um navio
cumpriria bem o papel. Até então, esse
tipo de transporte estava associado ao ganha-pão, já que era do porto que a maioria dos moradores
da região se sustentava. Agora, a imagem da embarcação negra ancorada no canal
do estuário, perto da Ilha Barnabé, simbolizaria a ameaça, o castigo, para quem
ousasse se rebelar. Naquele dia, a cidade ativista e de vanguarda, que sempre
esteve à frente de questões políticas, sociais, culturais, começou a regredir.
Ainda hoje não se sabe quantos homens estiveram presos no
Raul Soares, de abril a outubro de 1964. Não existem listas oficiais. Se um dia
elas foram elaboradas, jamais apareceram. As informações que entraram para a história
foram relatadas pelos próprios prisioneiros ou familiares.
As prisões eram revezadas. Alguns ficaram dias, outros,
semanas. Houve quem permanecesse trancafiado por meses. Os prisioneiros não
eram somente da região. Havia gente de toda parte do País. Relatos confirmam
essa informação.
Meu pai, Iradil Santos Mello, foi um dos presos do Raul
Soares. Era portuário e membro da diretoria do Sindicato dos Operários
Portuários. A primeira detenção ocorreu na cadeia do Dops e durou cerca de uma
semana, a partir de 1º de abril de 1964.
Em 18 de agosto, foi levado para o navio, porque se recusou a delatar um
companheiro, Antoninho Rodrigues. Os inquisidores insistiam para que ele
confirmasse que Rodrigues era comunista. Já contei essa história em meu livro “Raul
Soares, Um Navio Tatuado em Nós”, lançado em 1995, apesar de escrito dez anos
antes.
Não foi apenas a meu pai que a prisão atingiu. Toda a família ficou emocionalmente aprisionada
Não foi apenas a meu pai que a prisão atingiu. Toda a
família ficou emocionalmente aprisionada e ameaçada em sua subsistência.
Somente a coragem de minha mãe, Mercedes Gomes de Sá, nos livrou de passar
maiores privações. Com 26 anos de idade e três filhas pequenas, ela assumiu as
responsabilidades da casa e nos protegeu. Naquela época, não era comum mulheres
trabalharem e o movimento feminista ainda não tinha promovido a queima de
sutiãs em praça pública para reivindicar direitos e emancipação.
Minha mãe obteve autorização da Capitania dos Portos para
visitarmos meu pai no Raul Soares em uma tarde de sábado. Pegamos uma lancha da
Polícia Marítima no cais ao lado da estação das barcas, que fazem travessia
entre Santos e Vicente de Carvalho, e desembarcamos em um flutuante, escoltadas
por policiais. Subimos a bordo por uma escada com corrimão de corda, que me
deixou com muito medo. Eu tinha 6 anos de idade, minha irmã mais velha, Laura,
estava com 8 e a mais nova, Lúcia, era um bebê de poucos meses de vida.
Todas as mulheres usavam vestido ou saia. Não era hábito,
nem permitido entrar em órgãos públicos trajando calça comprida. Enquanto subíamos
a escada, os policiais ficavam lá embaixo, no flutuante, observando.
Por mais que ainda hoje o capitão dos portos da época, Júlio
de Sá Bierrenbach, afirme que os presos que ficaram sob sua responsabilidade
eram bem-tratados, posso garantir o contrário. Durante a visita, precisei ir ao
banheiro. A lembrança do que vi ainda me embrulha o estômago. Não havia água na descarga e nem sinal de que
o vaso sanitário um dia fora branco. O policial que nos escoltou (a mim e uma
tia que me acompanhava) ficou envergonhado. Tentou minimizar a sujeira forrando
o vaso com papel higiênico.
Se comparada a atrocidades cometidas durante todos os 21
anos do regime militar, essa situação pode ser considerada amena. Mas dor, humilhação
e violações são coisas que não se medem. Também não há como dimensionar suas
consequências. Quem sente é que sabe.
O capitão dos portos esforçava-se, e ainda se esforça aos 95
anos, para provar que os presos recebiam tratamento de primeira. No entanto,
notícias veiculadas nos jornais da época mostram, apesar da perceptível
intenção de agradar ao regime, que os direitos civis eram desrespeitados.
Em 16 de setembro de 1964, uma comitiva formada pelo oficial
de diligência Alfredo dos Santos, pelo advogado João Bernardes da Silva e pelo
promotor Durval Moura de Araújo inspecionou as condições dos 94 presos que
naquele dia estavam no Raul Soares. Diante de Bierrenbach e do comandante da
embarcação, capitão de corveta Astolfo
Barroso Migueis, a comissão atestou que
eram “satisfatórias”.
Quanto ao atendimento médico, as autoridades afirmaram que o
preso civil Thomas Maack, médico e ex-professor da Universidade de São Paulo
(USP), garantia a assistência. Em 2003, entrevistei Thomas Maack, que se mudou definitivamente
para Nova Iorque quando foi libertado. Ele afirmou que avaliava alguns presos
em casos de emergência, por força de sua profissão, mas que na embarcação não
havia como atender ninguém adequadamente.
Em 26 de agosto daquele ano, 13 presos foram levados do
navio à Capitania dos Portos de Santos, sob o pretexto de que seriam
libertados, em função de alvará expedido pelo juiz da 2ª Vara Criminal de
Santos. Às 22 horas, eles ouviram a leitura da ordem de libertação. No entanto,
15 minutos depois, receberam voz de prisão do próprio Bierrenbach. Segundo o
capitão, com base no Artigo 156 do Código de Justiça Militar, o grupo seria
investigado por atividades relatadas em outro inquérito. Assim, eles foram obrigados
a retornar ao navio. Essa ocorrência levou meu pai e Antônio Lisboa, um dos 13,
a compor uma música em que satirizavam a conduta do capitão.
Em 2004, a comissão estadual que analisava pedidos de
indenizações para presos políticos se dividiu em torno de dúvidas sobre a
aplicação de torturas a prisioneiros do Raul Soares. O médico e advogado
Henrique Carlos Gonçalves, então presidente do Conselho Regional de Medicina de
São Paulo (Cremesp), elaborou e expôs um parecer sobre métodos de tortura. Com
exemplos de rituais de vários povos, ele mostrou que nem sempre é preciso haver
violação do corpo para que uma pessoa seja torturada.
Ele mostrou que nem sempre é preciso haver violação do corpo para que uma pessoa seja torturada.
Confinar seres humanos em uma embarcação de 64 anos, sem as
mínimas condições de higiene e ocupação, bem diante do local em que eles
trabalhavam, mantê-los longe de seus
familiares, sob a mira de metralhadoras e à mercê de boatos de que o navio
seguiria para alto-mar, sem que tivessem culpa formada, é também uma forma de
tortura. Após a explanação de Gonçalves,
as indenizações foram concedidas. A comissão entendeu que os presos do Raul
Soares foram torturados.
Em 2 de novembro de 1964, o Raul Soares foi levado de volta
para o Rio de Janeiro e destruído. Como escrevi na página 13 de meu livro, a
imagem daquele navio negro e adernado “permaneceu tatuada em nós como os
números nos braços dos sobreviventes dos campos nazistas de concentração”.
Nem todos puderam, ou podem, contar o que viveram dentro da
embarcação e o que suas famílias sofreram em terra. Ou porque preferiram
esquecer, ou porque foram embora para sempre do País, ou porque adoeceram, ou porque
enlouqueceram, ou porque morreram... As
razões são muitas.
Nem tudo está registrado em documentos, em atas de
assembleias, em páginas de inquéritos ou de processos. Quem viveu, sobreviveu e se lembra, tem
liberdade para contar. Eu tenho e me
sinto na obrigação de fazer isso, para que nunca mais volte a acontecer.
(*) Lídia Maria de Melo é jornalista,
professora universitária e autora do livro Raul Soares, Um Navio Tatuado em
Nós.
Oi, Lídia. Ao menos na minha tela, a imagem não se amplia o suficiente para permitir a leitura do texto. Você tem a imagem em resolução maior?
ResponderExcluirAproveito para lhe dizer que a Editora Leopoldianum, à qual submeti os originais do livro sobre Esmeraldo Tarquínio, aprovou o projeto. Houve "excelente parecer", segundo o Marcelo Di Renzo. Agora, espero pela assinatura do contrato e pela produção.
Um abraço,
Rafael