
Boa parte da população, porém, nem se dava conta do que acontecia.
Já me cansei de dizer, mas vou continuar repetindo. Eu tinha 6 anos de idade quando o golpe se instalou no Brasil, na minha cidade de Santos, a chamada Barcelona brasileira. Começava a cursar a 1ª série do antigo Primário. A escola funcionava dentro do Sindicato dos Operários Portuários de Santos, na Rua General Câmara, 258.
Aqui, reproduzo o trecho de meu livro Raul Soares, Um Navio Tatuado em Nós (página 11), em que relato a visita que fiz a meu pai, junto com minha família. Ele estava encarcerado no navio que serviu de presídio político no Porto de Santos de abril a novembro de 1964:
''Uma lancha apanhou-nos no porto, em frente à alfândega.
Havia muitas mulheres, além de minha mãe e tia Neuza. E ainda outras crianças, além de mim, minhas irmãs, Laura e Lúcia, e nossa prima Sônia, de 3 anos.
Desembarcamos, perto da Ilha Barnabé, em um flutuante que balançava muito, amarrado no navio preto, adernado, o Raul Soares. Eu que sempre morri de medo do balanço de barca.
Os policiais marítimos, com uniformes de mescla azul, estendiam as mãos para nos ajudar.
Minha mãe com Lúcia, bebê, no colo, e aquela escada estreita, mole, tão insegura!
Que medo de cair!
Do flutuante, os policiais observavam nossa subida. E todas as mulheres e meninas de saia ou vestido. Naquele tempo, não era permitida a entrada de mulheres de calça comprida nos estabelecimentos públicos.
E eles lá embaixo olhando... Ódio era o que eu sentia!
Por dentro, o navio parecia maior.
Ficamos num salão repleto de mesas longas e... policiais marítimos.
Não sei da sensação de rever meu pai, mas não me esqueço de que reclamei de dor de cabeça. Um policial trouxe um comprimido cor-de-rosa. Acho que Melhoral infantil.
Recusei. Meu pai insistiu. Tomei, revoltada por ele ainda agradecer e sorrir para o ''polícia'', como eu dizia.
Pouco depois, pedi para ir ao banheiro.
Tia Neuza me acompanhou. O polícia correu na frente. A privada estava suja e sem descarga. Ele forrou o fundo com papel higiênico. Ela não me deixou sentar.
Desde então, fiquei com ódio de todo e qualquer policial marítimo. Não podia ver farda de mescla azul. Ofegava, emburrada.
Não houve outras visitas, porque eram proibidas. A Capitania dos Portos só permitiu aquela em uma tarde de sábado.
Na volta, conforme a lancha foi se afastando em direção ao cais, as mãos que acenavam nas vigias foram ficando menores, menores... até que sumiram. Só restou a imagem incômoda daquele navio negro, que permaneceu tatuado em nós, como os números nos braços dos sobreviventes dos campos nazistas de concentração''.
Sempre vale a pena recordar esse período para que os que não sofreram tal violência possam saber o que realmente aconteceu nesse País.
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