terça-feira, 24 de abril de 2012

Há 48 anos, o navio Raul Soares
virava prisão no Porto de Santos

Hoje, faz 48 anos que o navio Raul Soares chegou ao Porto de Santos para servir de presídio político. Publiquei matéria no jornal Diário do Litoral, a convite do jornalista e colega Francisco Aloise.
Para ler o texto na página 07, editoria Sindical/Previdência, clique aqui em Diário do Litoral. A edição aparecerá em PDF e permitirá a mudança de página.
A reprodução abaixo, mesmo ampliada, pode não propiciar uma visualização perfeita. 
Abaixo da imagem, você tem outra alternativa de leitura do texto na íntegra, mas sem a diagramação.

Reprodução da página
 
Há 48 anos, o navio Raul Soares virava prisão no Porto de Santos
 Lídia Maria de Melo (*)
Há 48 anos, na manhã de 24 de abril de 1964, uma sexta-feira, o navio Raul Soares chegava ao Porto de Santos. Não trazia cargas, nem passageiros. Procedente do Rio de Janeiro, tinha uma sinistra missão: servir de presídio político para aqueles que o regime militar, recém-instalado no Brasil, considerasse subversivo ou uma ameaça à ordem social.
Como não eram poucos os que se enquadravam nesse perfil, as cadeias santistas não davam conta do número de recolhidos para averiguação. No dia anterior, a imprensa local anunciara que, no Palácio da Polícia, situado na Rua São Francisco, mais de 60 pessoas estavam presas à disposição do Dops (Departamento de Ordem Política e Social). Na Capital, a decretação de prisões também aumentava.
Era preciso improvisar, mas com força e rigor. O uso de um navio cumpriria bem o papel.  Até então, esse tipo de transporte estava associado ao ganha-pão,  já que era do porto que a maioria dos moradores da região se sustentava. Agora, a imagem da embarcação negra ancorada no canal do estuário, perto da Ilha Barnabé, simbolizaria a ameaça, o castigo, para quem ousasse se rebelar. Naquele dia, a cidade ativista e de vanguarda, que sempre esteve à frente de questões políticas, sociais, culturais, começou a regredir.
Ainda hoje não se sabe quantos homens estiveram presos no Raul Soares, de abril a outubro de 1964. Não existem listas oficiais. Se um dia elas foram elaboradas, jamais apareceram. As informações que entraram para a história foram relatadas pelos próprios prisioneiros ou familiares.
As prisões eram revezadas. Alguns ficaram dias, outros, semanas. Houve quem permanecesse trancafiado por meses. Os prisioneiros não eram somente da região. Havia gente de toda parte do País. Relatos confirmam essa informação.
Meu pai, Iradil Santos Mello, foi um dos presos do Raul Soares. Era portuário e membro da diretoria do Sindicato dos Operários Portuários. A primeira detenção ocorreu na cadeia do Dops e durou cerca de uma semana, a partir de  1º de abril de 1964. Em 18 de agosto, foi levado para o navio, porque se recusou a delatar um companheiro, Antoninho Rodrigues. Os inquisidores insistiam para que ele confirmasse que Rodrigues era comunista. Já contei essa história em meu livro “Raul Soares, Um Navio Tatuado em Nós”, lançado em 1995, apesar de escrito dez anos antes.
Não foi apenas a meu pai que a prisão atingiu. Toda a família ficou emocionalmente aprisionada
Não foi apenas a meu pai que a prisão atingiu. Toda a família ficou emocionalmente aprisionada e ameaçada em sua subsistência. Somente a coragem de minha mãe, Mercedes Gomes de Sá, nos livrou de passar maiores privações. Com 26 anos de idade e três filhas pequenas, ela assumiu as responsabilidades da casa e nos protegeu. Naquela época, não era comum mulheres trabalharem e o movimento feminista ainda não tinha promovido a queima de sutiãs em praça pública para reivindicar direitos e emancipação.

Minha mãe obteve autorização da Capitania dos Portos para visitarmos meu pai no Raul Soares em uma tarde de sábado. Pegamos uma lancha da Polícia Marítima no cais ao lado da estação das barcas, que fazem travessia entre Santos e Vicente de Carvalho, e desembarcamos em um flutuante, escoltadas por policiais. Subimos a bordo por uma escada com corrimão de corda, que me deixou com muito medo. Eu tinha 6 anos de idade, minha irmã mais velha, Laura, estava com 8 e a mais nova, Lúcia, era um bebê de poucos meses de vida.
Todas as mulheres usavam vestido ou saia. Não era hábito, nem permitido entrar em órgãos públicos trajando calça comprida. Enquanto subíamos a escada, os policiais ficavam lá embaixo, no flutuante, observando. 
Por mais que ainda hoje o capitão dos portos da época, Júlio de Sá Bierrenbach, afirme que os presos que ficaram sob sua responsabilidade eram bem-tratados, posso garantir o contrário. Durante a visita, precisei ir ao banheiro. A lembrança do que vi ainda me embrulha o estômago.  Não havia água na descarga e nem sinal de que o vaso sanitário um dia fora branco. O policial que nos escoltou (a mim e uma tia que me acompanhava) ficou envergonhado. Tentou minimizar a sujeira forrando o vaso com papel higiênico.
Se comparada a atrocidades cometidas durante todos os 21 anos do regime militar, essa situação pode ser considerada amena. Mas dor, humilhação e violações são coisas que não se medem. Também não há como dimensionar suas consequências. Quem sente é que sabe.
O capitão dos portos esforçava-se, e ainda se esforça aos 95 anos, para provar que os presos recebiam tratamento de primeira. No entanto, notícias veiculadas nos jornais da época mostram, apesar da perceptível intenção de agradar ao regime, que os direitos civis eram desrespeitados. 
Em 16 de setembro de 1964, uma comitiva formada pelo oficial de diligência Alfredo dos Santos, pelo advogado João Bernardes da Silva e pelo promotor Durval Moura de Araújo inspecionou as condições dos 94 presos que naquele dia estavam no Raul Soares. Diante de Bierrenbach e do comandante da embarcação, capitão de corveta  Astolfo Barroso Migueis,  a comissão atestou que eram  “satisfatórias”.
Quanto ao atendimento médico, as autoridades afirmaram que o preso civil Thomas Maack, médico e ex-professor da Universidade de São Paulo (USP), garantia a assistência. Em 2003, entrevistei  Thomas Maack, que se mudou definitivamente para Nova Iorque quando foi libertado. Ele afirmou que avaliava alguns presos em casos de emergência, por força de sua profissão, mas que na embarcação não havia como atender ninguém adequadamente.
Em 26 de agosto daquele ano, 13 presos foram levados do navio à Capitania dos Portos de Santos, sob o pretexto de que seriam libertados, em função de alvará expedido pelo juiz da 2ª Vara Criminal de Santos. Às 22 horas, eles ouviram a leitura da ordem de libertação. No entanto, 15 minutos depois, receberam voz de prisão do próprio Bierrenbach. Segundo o capitão, com base no Artigo 156 do Código de Justiça Militar, o grupo seria investigado por atividades relatadas em outro inquérito. Assim, eles foram obrigados a retornar ao navio. Essa ocorrência levou meu pai e Antônio Lisboa, um dos 13, a compor uma música em que satirizavam a conduta do capitão.
Em 2004, a comissão estadual que analisava pedidos de indenizações para presos políticos se dividiu em torno de dúvidas sobre a aplicação de torturas a prisioneiros do Raul Soares. O médico e advogado Henrique Carlos Gonçalves, então presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), elaborou e expôs um parecer sobre métodos de tortura. Com exemplos de rituais de vários povos, ele mostrou que nem sempre é preciso haver violação do corpo para que uma pessoa seja torturada. 
Ele mostrou que nem sempre é preciso haver violação do corpo para que uma pessoa seja torturada. 
Confinar seres humanos em uma embarcação de 64 anos, sem as mínimas condições de higiene e ocupação, bem diante do local em que eles trabalhavam,  mantê-los longe de seus familiares, sob a mira de metralhadoras e à mercê de boatos de que o navio seguiria para alto-mar, sem que tivessem culpa formada, é também uma forma de tortura.  Após a explanação de Gonçalves, as indenizações foram concedidas. A comissão entendeu que os presos do Raul Soares foram torturados.
Em 2 de novembro de 1964, o Raul Soares foi levado de volta para o Rio de Janeiro e destruído. Como escrevi na página 13 de meu livro, a imagem daquele navio negro e adernado “permaneceu tatuada em nós como os números nos braços dos sobreviventes dos campos nazistas de concentração”.
Nem todos puderam, ou podem, contar o que viveram dentro da embarcação e o que suas famílias sofreram em terra. Ou porque preferiram esquecer, ou porque foram embora para sempre do País, ou porque adoeceram, ou porque enlouqueceram, ou porque morreram...  As razões são muitas.
Nem tudo está registrado em documentos, em atas de assembleias, em páginas de inquéritos ou de processos.  Quem viveu, sobreviveu e se lembra, tem liberdade para contar.  Eu tenho e me sinto na obrigação de fazer isso, para que nunca mais volte a acontecer.
 (*) Lídia Maria de Melo é jornalista, professora universitária e autora do livro Raul Soares, Um Navio Tatuado em Nós.

sábado, 14 de abril de 2012

Há 100 anos, o Santos criava a arte de futebolar


Santos sempre Santos, glorioso alvinegro praiano!
Um século de tradição, técnica, genialidade e arte de futebolar.

                         Texto e fotos de Lídia Maria de Melo.
E tudo começou com esta camiseta em 1912.

Ganhou o mundo, saído da Vila Belmiro, 
 e se eternizou no nome de Pelé.
Não importa o lugar do planeta,
Santos será sempre o Leão do Mar.

Parabéns, glorioso Peixe! Nosso orgulho!
Parabéns, Meninos da Vila!

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sexta-feira, 6 de abril de 2012

Sexta-feira Santa, um dia de resguardo, um dia de cinema. "Em memória de mim".

Sexta-feira da Paixão. Desde que me entendo por gente, este é um dia de resguardo. Não se ia à praia, nem se festejava.  Dia de bacalhau ou peixe no almoço. Comia-se peixe, e ainda se come, para evitar a carne vermelha. Dia em que Jesus Cristo foi sacrificado na cruz pelos romanos,  depois de ter sido traído por Judas. O mesmo Judas que participou da ceia com ele e os outros 11 apóstolos.
Embora tenha sido batizada, feito a primeira comunhão aos 8 anos de idade e estudado os quatro anos do antigo Ginásio em um colégio de freiras, as imagens mais fortes da história de Cristo que memorizei  não me chegaram ao conhecimento exatamente por meio da Igreja. E nessa afirmação não está embutida nenhuma crítica, é bom ressalvar.
O cinema foi determinante no meu conhecimento da trajetória do Filho de Deus.
Em minha infância, quando a influência da televisão ainda não era tão forte nas casas e não havia tanto perigo nas ruas, assim como as crianças podiam ir à escola ou ao cinema sem a companhia dos pais, eu e minha irmã mais velha costumávamos assistir às matinês aos domingos.
Nas Sextas-feiras Santas, o hábito prevalecia.
Após o almoço, não perdíamos a sessão da tarde no cinema.
As únicas recomendações de nossos pais era que não falássemos com estranhos, nem mascássemos chiclete. Para que não caíssemos em tentação, eles sempre citavam o exemplo de alguma criança que já tinha morrido engasgada com a goma elástica.
Obedientes, comprávamos outras guloseimas, como drops Dulcora, quadradinhos e embalados em celofane, ou cigarrinhos de chocolate ao leite, da marca Pan, ou ainda a pipoca vendida por pipoqueiro na calçada em frente ao cinema.
Na tela gigante, acompanhávamos compadecidas a história de Jesus Cristo, do nascimento à ressurreição, passando obviamente pelo calvário de transportar a cruz nos ombros ensanguentados pelas chicotadas dos soldados romanos.
O martírio aumentava com a coroa de espinhos lhe espetando a cabeça. Não é por outro motivo que a planta usada para ornamentar muros e espantar invasores se chama coroa-de-cristo. No momento da crucificação, íamos às lágrimas.
No filme, havia ainda a cena marcante do Monte das Oliveiras e do Sermão da Montanha. O momento crucial era o da ascensão aos céus, envolto em uma nuvem, que simbolizava o encontro com Deus.
Não me lembro do título exato do filme, nem o nome do diretor, tampouco os dos atores. Só sei que chamávamos de Paixão de Cristo e estávamos na segunda metade dos anos 1960.
Nessa época, antes do filme começar, era exibido o futebol do Canal 100. Isso salvava muita gente atrasada de perder o início da fita. Quando o filme estava na metade, havia um intervalo para se ir ao banheiro ou beber água.
Voltando ao título, encontrei em uma pesquisa que, em 1961, entrou em cartaz o filme Rei dos Reis, de Nicholas Ray, mas talvez não tenha sido esse o que vi, porque com certeza eu ainda era muito bebê para ir ao cinema por essa ocasião. A não ser que ele tenha sido exibido alguns anos depois.
Outra alternativa é A Maior História de Todos os Tempos, de George Stevens, lançado em 1965. Bem mais plausível, já que as cópias não chegavam aos cinemas de pequenas cidades com tanta velocidade. Assim, posso ter visto no ano seguinte.
A prova de que a exibição nos cinemas fora das capitais não ocorria de acordo com a estreia é que também foi por intermédio da telona que conheci a história de Moisés, vivido por Charlton Heston, e do povo hebreu, da travessia do Mar Vermelho e da leitura da tábua das leis de Deus.
Só que o filme Os Dez Mandamentos, que narrava esses fatos, foi lançado em 1956. Nesse ano, no entanto, eu ainda nem tinha nascido. De fato, fui ver esse filme no cinema mais de uma década depois da estreia.
Revendo fotos e cenas de A Maior História de Todos os Tempos, estou tentada a dizer que era a esse que eu assistia em toda Sexta-feira Santa. Por sinal, nele Charlton Heston interpretava João Batista.
De qualquer modo, o cinema foi importante no meu processo de conhecimento da história de Cristo.
Hoje, busco entender um pouco mais, indo à missa, lendo a Bíblia e refletindo.
Entre tantas passagens, há uma que sempre me emociona. É o momento em que, à mesa, Ele reparte o pão, que simboliza seu corpo, e oferece o vinho, que é seu sangue, dizendo: "Fazei isto em memória de mim".
Seria bom que jamais nos esquecêssemos disso.