quinta-feira, 22 de março de 2012

Júlio Voltarelli, que morreu ontem, explica em entrevista inédita funcionamento de transplante de células-tronco em pacientes de lúpus

Júlio Voltarelli - reprodução CNPq
Faz mais de um mês que não encontro tempo, nem motivo para escrever neste blog.
Ainda há pouco, acessei o G1 e fui surpreendida com uma notícia, sem destaque, na editoria de Ciência e Saúde. Ao lado de uma pequena foto de rosto, pude ler: Júlio César VoltarelliMorre pioneiro brasileiro das células-tronco. Cliquei no título e a triste informação se confirmou.
Um dos maiores cientistas do Brasil, que não conheci pessoalmente, mas que sempre me tratou muito bem quando recorri a ele, para solicitar entrevista ou pedir alguma informação, morreu ontem (21), às 16h30, em Blumenau (SC), aos 63 anos, em consequência de complicações decorrentes de um transplante de fígado.
Desde 9 de março, estava internado, distante dos laboratórios onde pesquisava e lecionava  em Ribeirão Preto.  Júlio Voltarelli era professor titular e pesquisador do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da Universidade de São Paulo (USP). Seu currículo era rico e extenso em relação a procedimentos que levavam à cura de doenças graves.
Em 2002, ele me concedeu uma entrevista por e-mail sobre o uso de transplante de células-tronco em portadores de lúpus, e até me mandou um recado bem-humorado na introdução.
Contou que tinha sido entrevistado por uma TV de Brasília no dia anterior (18 de junho) e o repórter lhe dissera que ia me entrevistar naquele dia em que ele me escrevia (19 de junho).  Voltarelli, então, informou ao repórter que aproveitaria o feriado pelo Dia da Cidade, para responder a minha entrevista.
O tom brincalhão era como um pedido de desculpas, porque eu havia entrado em contato em abril e ele aceitara a entrevista. Pediu-me para mandar as perguntas e eu enviei no dia seguinte. As respostas só chegaram em e-mail datado de 19 de junho, às 16h26.
Até hoje tenho guardado o e-mail com as respostas dele, que eu nunca divulguei (mas faço isso agora, logo abaixo). A entrevista seria somada a uma série de outras, com médicos e portadores de lúpus eritematoso sistêmico, e faria parte de um livro sobre a doença.  Eu pretendia mostrar nesse livro como eu me livrei do lúpus após tantos anos. Por uma série de razões, como o trabalho em jornal diário e a minha contratação para escrever uma biografia, fui adiando esse projeto. E assim se passaram dez anos, como diz a antiga canção.
Algumas vezes, como editora do jornal A Tribuna, de Santos, indiquei Júlio Voltarelli para ser entrevistado por repórteres de minha equipe. Ele jamais se recusou a transmitir informações. Também orientei alguns portadores de lúpus, que me procuravam pela internet, a entrar em contato com ele em Ribeirão Preto.
Na entrevista que ambos concedemos à TV de Brasília, em 2002, aparecemos falando sobre lúpus. Eu, em Santos, e ele, em Ribeirão Preto. Nunca chegamos a nos ver pessoalmente, mas sabia que em algum lugar daquela cidade do interior de São Paulo havia um homem apaixonado pelo trabalho que desenvolvia em favor da humanidade.
Júlio Voltarelli teve hepatite C que evoluiu para cirrose. Precisou de um transplante de fígado e inscreveu-se na lista em Santa Catarina.
Seu velório começou ao meio-dia de hoje no Centro Cultural do Campus da USP em Ribeirão Preto. A cidade decretou luto oficial de três dias. O sepultamento ocorrerá no município de Cedral, região de São José do Rio Preto.
Não sei se Júlio Voltarelli, como cientista, acreditava em Deus. De qualquer modo, espero que esse grande profissional e ser humano seja recebido de braços abertos, da mesma maneira como ele acolhia a seus pacientes e abraçava seus projetos.
Abaixo, publico, pela primeira vez, a entrevista que Voltarelli me concedeu em 2002. Na ocasião, agradeci muitíssimo a ele. Hoje, continuo agradecendo.
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Entrevista

Júlio Voltarelli explica uso de células-tronco contra lúpus 

                                                  Lídia Maria de Melo

Oi, Lídia, ontem dei entrevista para uma TV de Brasília sobre o transplante de células-tronco hematopoéticas (TMO) em lúpus. Eles me disseram que iriam lhe entrevistar hoje. Disse a eles que iria aproveitar o feriado (dia da cidade) aqui hoje e responder a sua entrevista.
Um abraço,
Prof. Júlio Voltarelli.

Lídia Maria de Melo:
Seu trabalho em relação ao lúpus é como imunologista?
Júlio Voltarelli: Veja abaixo. 


LMM: Existem outros especialistas vinculados a essa pesquisa, como um reumatologista, por exemplo?
JV: Eu sou um imunologista clínico e me dedico predominantemente ao TMO para neoplasias e doenças autoimunes hematológicas como as leucemias e a anemia aplástica
, mas também trabalho como reumatologista, atendendo pacientes com lúpus e outras doenças reumáticas. (Nota da jornalista: anemia aplástica ou aplasia de medula óssea).

LMM: A informação que obtive é que o sr. está realizando transplantes de medula, pelo SUS, portanto gratuito, em pacientes com lúpus. Como nunca ouvi falar nesse método, suponho que seja inédito no Brasil. É isso mesmo?
JV: Realmente, estamos realizando transplantes de medula óssea gratuitos, pelo SUS, em um programa que envolve vários centros no Brasil. O programa é inédito no Brasil, o primeiro transplante para LES no Brasil  foi realizado por nós em setembro de 2001,  mas, antes disso, três transplantes foram realizados para outras doenças (vasculites e esclerodermia), fora deste programa. 


LMM: O mesmo vale para o exterior? Pelo que já conversei com pacientes de Portugal, Alemanha e Holanda, o tratamento no Brasil está muito mais avançado. Uma das pessoas com quem conversei  teve que vir ao Brasil para confirmar o diagnóstico. Fiquei surpresa. Por isso, questiono se já existem experiências com essa finalidade em outro país.
JV: O primeiro transplante para lúpus no mundo foi realizado na Itália em 1996, depois disto algumas dezenas foram feitos na Europa e nos EUA. Assim, não é correto dizer que estamos mais avançados no Brasil do que no exterior, porque só começamos no ano passado. 


LMM: Quando começou essa pesquisa com portadores de lúpus? E como se chegou à conclusão de que o transplante pode tratar a doença, se ainda não se sabe a origem dela?
JV: Quanto ao início das pesquisas, foi na década de 80, com transplantes em animais portadores de lúpus. Apesar de não se conhecer a causa (etiologia) do lúpus, conhece-se muito sobre os mecanismos (imunopatogênese) da doença, permitindo concluir que o transplante pode ser benéfico. 


LMM: Quantos já foram realizados e quais foram os resultados?
JV: O hospital com maior experiência em TMO para  lúpus é o da Northwestern University em Chicago, EUA, que realizou 15 transplantes, sem ter ocorrido nenhum óbito. Todos os pacientes melhoraram e em dois pacientes, a doença voltou. Nós temos um contato estreito com os diretores daquele centro (drs. Richard Burt e Ann Traynor), tentando repetir estes resultados e, atualmente, uma médica da nossa Unidade está estagiando lá, procurando absorver a experiência deles. Em outros centros com menor número de transplantes realizados, inclusive o nosso, os resultados são animadores, mas não tão favoráveis. No nosso centro, na USP-Ribeirão Preto, transplantamos até agora dois pacientes com lúpus, um deles está evoluindo muito bem, oito meses após o TMO, sem tomar nenhuma medicação para o lúpus. Outra paciente, infelizmente, faleceu por complicações do transplante. 


LMM: Quais as condições para que o paciente faça o transplante?
JV: O paciente tem que apresentar um comprometimento de um órgão vital (rim, cérebro, coração, pulmão, sangue, etc), sem resposta à medicação tradicional (corticoides, imunossupressores, imunoglobulina etc). 


LMM:  Não é um método arriscado? Ou vale para quem já não tem saída?
JV: O método tem seus riscos (veja Resposta 6), por isso tem que ser bem indicado (veja R. 7), mas também não se pode deixar a doença avançar muito porque para o transplante o paciente necessita de ter um funcionamento razoável dos seus órgãos vitais, senão as complicações do transplante podem ser muito graves. Além disso, se o comprometimento da doença for muito avançado, nem o transplante pode recuperá-lo. 


LMM: O transplante é aliado ao uso de medicamentos tradicionais, como a cortisona?
JV: O objetivo do transplante, e uma das suas grandes vantagens, é livrar o paciente do uso de drogas imunossupressoras, principalmente os corticoides. Quando a doença volta (recai) após o transplante, doses menores desses imunossupressores costumam controlá-la mais facilmente do que antes do transplante. 


LMM: Outro dia, também ouvi que uma lúpica ia ser submetida a sessões de quimioterapia. Também fiquei surpresa, porque sempre imaginei que a quimio fosse apenas para tumores cancerígenos, leucemia e linfomas. O sr. tem experiências nesse sentido (digo, quimio para lúpus)? Vale para todos? Ou só para casos graves?
JV: Muitas drogas imunossupressoras usadas para lúpus, como a ciclofosfamida endovenosa (Cy EV), são também usadas para tratamento de câncer, são quimioterápicos/imunossupressores.  A Cy EV é usada de rotina no tratamento de lúpus grave, na forma de pulsos e também em uma dose mais alta, na preparação do paciente para o transplante de medula óssea. 


LMM: O sr. tem alguma hipótese para o surgimento de doenças como lúpus, esclerodermia, anemia falciforme? Cito uma família em que uma filha tem lúpus, outra, esclerodermia e uma terceira, traços de anemia falciforme. A mãe tem dores e problemas articulares, como artrose, bursite, e o pai, linfoma.
JV: Existe uma predisposição genética para ocorrência de doenças autoimunes, como lúpus, artrite, esclerodermia, e uma associação dessas doenças com câncer. Quanto à associação com anemia falciforme, acho que é coincidência.


Um comentário:

  1. Entrevista esclarecedora. Lamento a morte de Júlio, que o espírito do trabalho dele esteja presente em outros profissionais da área.

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