quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Ditadura militar: uma história invertida

Toda vez que se aventa a possibilidade de abertura dos documentos do período militar, é imediata a reação do comando das Forças Armadas brasileiras e de grupos de extrema-direita (o termo só parece antiquado). No final de dezembro, houve um novo burburinho envolvendo os ministérios da Defesa, dos Direitos Humanos e da Justiça.
O receio é que a Lei da Anistia (de 1979) seja alterada. Com isso, os crimes cometidos por militares ou agentes e órgãos do Estado poderão ser julgados, a exemplo do que já fez a Argentina e está fazendo o Chile.
Um dos argumentos dos que são contrários a essa revisão histórica é que a anistia passou uma borracha em tudo o que ocorreu durante os 21 anos de ditadura. Assim, tanto as ações do governo quanto dos opositores do regime estão perdoadas. Há quem diga que, se houve excesso de um lado, ocorreram também do outro. Alguns chegam até a citar crimes da esquerda que estariam impunes até hoje.
Esse argumento só parece lógico para quem não conhece a História.
O crime contra o País começou no dia em que o presidente João Goulart, legitimamente eleito pela população, foi deposto. Jango vencera as eleições como vice-presidente. Com a renúncia de Jânio Quadros, tinha o direito legal de assumir. Como estava em viagem na China, os militares quiseram impedi-lo de tomar posse, no que foram vencidos por uma reação liderada, entre outros, por Leonel Brizola. Após sua posse, foi convocado um plebiscito que referendou sua permanência no cargo. Não satisfeitos com a derrota, os militares deram o golpe, alegando que o Brasil estava prestes a passar para as mãos dos comunistas.
(Discurso de João Goulart-13.3.1964)
Ao longo de 21 anos, de ato institucional em ato institucional, os direitos da população foram suprimidos. Para quem estava acostumado a simplesmente pensar e participar da vida do País, essa violência ficou clara. Para quem foi envolvido pelo discurso falacioso da ditadura, nada acontecia. Pensamento e senso crítico foram embotados.
Na verdade, uma pequena parcela dos que se atreveram a resistir pegaram em armas. Numa tremenda desvantagem. Ainda assim, só depois que todos os direitos civis foram ceifados, após a decretação do Ato Institucional nº 5 em 13 de dezembro de 1968.
Ainda não é de todo conhecido o número de pessoas presas ilegalmente, com direitos políticos cassados, submetidas a torturas, assassinadas ou desaparecidas.
Quem ficou à margem dos fatos (a maioria da população brasileira) não tem noção do que realmente aconteceu neste País. Situação inversa ocorre na Argentina. Em termos de participação e consciência histórica, o povo argentino dá de dez a zero em nós, brasileiros.
Hoje, no Brasil, qualquer cidadão tem o direito de criticar, por exemplo, o presidente da República. Até programas humorísticos de televisão exibem personagens caricatos do presidente. As pessoas podem reclamar seus direitos se acham que estão sendo lesadas. Muitos recorrem à imprensa e expressam sua indignação. Outros tantos fazem greves, passeatas, erguem cartazes e faixas fazendo distintas reivindicações.
Hoje, vivemos numa democracia. Há coisas boas e outras ruins. O governo acerta e erra... Mas nós podemos nos manifestar, contra ou a favor.
Durante o regime militar, essas atitudes que hoje parecem banais e óbvias podiam ser punidas, sumariamente, até com a morte.
O Estado era (e ainda é) responsável pela integridade física dos cidadãos que estão sob sua guarda. Portanto, se um preso é agredido, ultrajado, torturado, morto, enquanto estava (ou está) sob a tutela desse Estado, o crime da autoridade fica caracterizado. Pelas leis brasileiras, ninguém pode fazer justiça pelas próprias mãos. Todo acusado tem direito a defesa, a julgamento digno e a garantia de integridade física. Esses princípios, no entanto, foram violados durante 21 anos. Até hoje, porém, ninguém foi acusado por crimes cometidos pelo Estado.
No caso do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, por exemplo, a União foi considerada culpada pela morte dele nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo. Mas qual foi o agente do Governo que, de fato, matou Vlado? Até hoje ele não tem um nome, nem uma face.
Já os oposicionistas da ditadura, que são acusados de terem cometido excessos, esses foram identificados e já receberam suas penas: ou por meios legais, ou por ilegais, como prisões, tortura, exílio, morte, desaparecimento...
Pessoalmente, acho que remexer nesse baú vai fazer muito mal, emocionalmente, a quem viveu de perto aqueles anos. É como se a vida nunca pudesse seguir em frente. É como se a gente nunca pudesse esquecer. De fato, a gente nunca esquece. Mas ouvir quem não conhece essa História dizer que as vítimas é que estavam erradas... Ah, isso é um pouco demais! Estão querendo inverter os papéis nessa História. E com isso eu não posso concordar.

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